A vez de morrer (capa do romance)
romance, 2014

Este romance é o quinto livro da autora, o primeiro publicado através da editora Companhia das Letras. Tem uma linguagem mais linear e realista, sem deixar de tocar em temas caros à autora, como o poder, o sexo, a religião e a posição da mulher na sociedade.

SINOPSE

Voltando para o Rio de Janeiro após a Copa, Izabel descobre que a cidade está cara demais para ela morar sozinha. Começa a passar os fins de semana (e cada vez mais tempo) no sítio do falecido avô, em Araras, na região serrana do Rio. Araras é o destino de fim de semana de muitas celebridades cariocas, cujos luxuosos sítios são mantidos por caseiros. Em Araras, mora Eduardo, filho de um casal de caseiros evangélicos, dono da lan house local e quase namorado da baixista da banda local. Alternando entre os pontos de vista de Eduardo e Izabel, o romance dá um panorama da região que também funciona como um microcosmo do Brasil.

trecho do livro

Alguém tinha pichado as letras B.D.S.M. no muro da companhia telefônica. Meu Deus, onde as crianças estão aprendendo isso? Na internet, lógico. Na sua loja, Eduardo.

Ele havia emprestado o carro para a mãe e a irmã e estava no ônibus sentido Vale das Videiras.

A mãe de Eduardo ia na Casa da Salvação, uma igreja sem programa de TV, mas com muitas filiais pelo país. A CdS casava muita gente e era muito emocional — sem grande ênfase em cultos de libertação —, ao contrário, por exemplo, da Vencer em Cristo, que a irmã de Eduardo preferia com defensivo fervor.

A Vencer era dissidência da igreja em que a família se tornara evangélica, nos idos dos anos 90. Desde aquela época, a denominação levava a sério a história de espalhar as boas-novas: tinham rádios, programas de TV e filiais por todo o planeta. Procuravam arrecadar de acordo.

O templo mais próximo ficava em Itaipava, e era o maior da região. Então domingo elas levavam o carro; Antônia era deixada na Casa da Salvação, e Talita prosseguia até Itaipava.

Já Sirlene frequentava a Church of J.C., modalidade assumidamente jovem que, apesar do nome, havia nascido no Brasil. Não só permitia como incentivava skate, futebol e outros esportes. Da última vez que Eduardo fora num culto o assunto tinha sido natureza — como Deus se expressava através dela. “A terra é o escabelo dos pés do Senhor. Escabelo quer dizer pufe”, disse o pastor.

Eduardo não frequentava nada desde os quinze anos. Isso era visto com desconfiança, mas era perdoável, porque ele era “trabalhador” e não tinha “vícios”.

Volta e meia, Sirlene tocava seu baixo no culto da Igreja Fogo Divino do Malta. Ela não suportava, mas ia mesmo assim, por dever moral. Acompanhava o teclado e uma bateria eletrônica. Música evangélica “normal” era aquilo mesmo: introduções trabalhadas, arranjos sentimentais, levadas heroicas, refrões repetitivos — vibratos. O rock cristão pelo menos fugia um pouco daquilo.

Na Church of J.C. e no resto do tempo, Sirlene tocava com a Holy Sacrifice, banda com ela no baixo, Jonas na bateria, Aráquem na guitarra e Graciane no vocal. Não tinha teclado. Não tinha bateria eletrônica. Era uma banda de unblack metal.

Ele havia chegado atrasado, em parte para coibir o nervosismo pré-show da quase-namorada. Quando entrou, um solo furioso fustigava o salão. Bem, certamente não tão furioso quanto os guitarristas desejariam, já que a potência do som era bem mixa. Distorcia, mas ninguém parecia ligar.

Quando terminou, sob as salvas de palmas e urros dos jovens membros da igreja, uma figura de terno projetou sua sombra no palco parando bem na entrada do templo. O rapaz no terno sorriu, os dentes todos no rosto moreno, e ergueu a mão grossa em cumprimento. A vocalista espremeu os olhinhos num sorriso em resposta. E emendou outra música.

Eduardo conhecia a história daquele terno. Tinha sido adquirido num shopping carioca. Três semanas até o ajuste estar pronto. A história era que o terno pré-fabricado não assentava bem no tronco espadaúdo de Júnior; e que depois de ajustado o terno ele não conseguia abrir os braços, e estava sempre abrindo os braços! Para louvar e inflamar o povo.

Mas tudo bem. Logo Júnior teria o segundo terno, e dessa vez ia procurar alguém pra fazer sob medida. Júnior, irmão de Sirlene, tinha acabado de ser ordenado pastor em Três Rios e ia casar com Graciane em menos de dois meses. Ela deixaria a banda, que, segundo Sirlene, ia aproveitar para dar uma reformulada.

— Ficar mais metal — dissera.

Como era: as meninas faziam coro agudo em certos momentos, Sirlene forçando um pouco a voz porque não era soprano como Graciane, e os caras se alternando no vocal principal. Com a saída iminente de Graciane, queriam que Aráquem assumisse o vocal. Sirlene agora ia “cantar mesmo” em algumas músicas, e alternar com Aráquem em outras. Estavam rearranjando tudo e ensaiando novas composições. O nome ia mudar, provavelmente para Immolation. Tentariam se apresentar no palco jovem de um festival de música gospel no fim do ano.

Sirlene lhe contava tudo, às enxurradas. Estava apaixonada pelo seu ouvido. Ele não havia lhe dado esperança; havia lhe dado ouvidos. E um pouco de sexo. Pra algumas mulheres bastava isso. Para Sirlene, talvez fosse pior que um anel de noivado. Ele culpava a idade, mas não muito; ficar calado, trepar e estar lá já tinha enredado até mulher mais velha. Complicado.

Ela não o beijou dentro da igreja, mas saiu de mãos firmemente dadas com ele, querendo passear assim na frente dos diversos estabelecimentos da rua. Ele pegou carona com Aráquem para evitar isso.

Não soube dizer se ela entendeu o recado ou não. Mas quando se desvencilhou da bateria e saltou do Uno cinza, já parecia uma resolução: tinha que tomar distância daquela menina.